Eu estava só. Ouvia alguém me chamar, mas eu não reconhecia a voz. Eu estava só era disso que eu me lembrava. Ainda me recordava de quando você apareceu, seu sorriso, brilho vivo em seu olho. Eu mal sabia, mas tudo iria mudar. Chegou como amigo, desfez uma multidão de coisas que eu carregava em meus ombros. Tudo o que me sufocava caíra por terra naquele dia. A sombra funesta da morte foi-se. Ares de vida repousaram sobre mim. Havia o dito pelo não dito e isso não importava. Importava que consegui ver vida no seu brilho.
A voz gritava alto e eu não conseguia responder. O que seria o sonho? A voz que me chamava ou a lembrança do primeiro beijo? O sangue fervia e a voz pérfida não diminuía a vontade de te tocar. Um mar rubro não mancharia as lembranças boas, ainda que não soubesse me livrar dela. Quem estaria a me chamar? Uma voz de homem? Um grito sofrido de agonia? Ou o amante que me buscava louco e sem algo que refreasse sua volúpia por amar?
Ainda não sabia quem poderia ser. A noite era morna, deixava no ar um cheiro de medo e dificuldade. Qual seria a daquela noite? O que eu poderia esperar dela? O que ela esperaria de mim? Eu estava em minha casa e ela me cutucava com sua vara curta. Eu me sentia uma onça, verdadeira fera. Esperava que ele voltasse e me trouxesse boas noticias do mundo lá fora. Mas agora o que eu ouvia era a voz estranha. Seria a própria voz da noite a me gritar? Dizem que na noite se escondem as mais variadas criaturas das sombras, poderia ser a própria morte a me chamar.? Essas todas perguntas ficariam sem uma resposta caso a voz não me gritasse com maior veemência. De todas as vezes a voz gritava com maior e menor intensidade, agora porém vinha com socos na porta de casa. Acordei de sobressalto. Era uma voz de homem que me chamava. Não, não era você. Se fosse não me agarraria forçosamente e tirando minha roupa tirasse também a sua e me possuísse de forma brutal e sagaz.
Aconteceu tudo muito rápido, mal pude dizer qualquer coisa. Me senti agredida, violada. Mas me senti pior por haver lhe dado o direito quando assumi a vida fácil. Vida fácil, olha o que eu disse. Quem disse que essa minha vida é fácil? Sou violada todo dia por uma mísera e paupérrima nota de cem, podiam ser duas de cinquenta, cinco de vinte ou dez de dez reais., mas esses bandidos nem para trocar a grana. Querem que eu esteja impecável, limpa de banho tomado, poderiam me facilitar bem mais a vida, se trocassem o dinheiro para pagar o serviço. Aqui nesse submundo, porém as coisas são o que são. Eu me entrego por pouco e me deixo vencer muitas vezes pelo cansaço. A voz da morte e dos mal-amados gritam no meu ouvido sem parar. Onde estaria o amor e seus olhos bonitos?
Eu já não ouvia mais vozes só o clamor dos trovões que me convidavam a voltar ao meu sono. Que remédio? A voz dos trovões era o meu único consolo. Me sentia suja e só um abraço seu limparia-me por hoje. Vou esperar a chuva passar. Amanhã com os olhos descansados procurarei o que a vida bandida me nega. Não tenho medo de ninguém, tem tanta gente que me procura e depois me esquece. Tem gente que se traveste de bandido só para me enlouquecer. Mas você se vestiu de salvador de vidas só para me chamar de sua.
Você chegou, não me perguntou nada, apenas me beijou e me tocou, sem querer me ter, apenas advinhando como havia sido minha noite. Também vinha do trabalho, do trabalho na noite seu corpo havia sido possuído por outros e outras, estava cansado, havia ganho o dinheiro para as compras da semana. Queria apenas um banho um abraço e algo para beliscar. Tomamos um banho juntos, nos aquecemos um nos braços do outro e continuamos no abraço, de quem nunca quer saber como fora a noite no trabalho, sem ciúmes de cliente. Sabíamos que éramos um do outro e isso era o que nos bastava.
Descansaríamos, conversaríamos longamente, mas nunca sequer faríamos menção a nada que ocorrera com os outros. Os outros não importam dizia-mos um ao outro. A vida continuaria e viveríamos nos amando sabendo do outro apenas aquilo que não nos ferisse o coração. Tem gente que se veste de sofredor para nos enganar, nós sofríamos sabendo um do sofrimento do outro, sendo solidários, porém deixando a vida seguir o curso.
O que importa para nós dois é o chamego que temos um pelo outro, antes éramos vida louca, agora somos amantes eternos, o não saber como será o outro dia é que faz o que temos um com o outro eterno. Isso que dá liga á massa de nossos enroscos pode ser chamado pelos poetas de amor. Dizem que o amor liberta, nos sentimos livres, nos braços um do outro. Parecemos ser apenas um e isso faz a diferença. Viver um dia de cada vez faz com que isso seja eterno. Esperamos que nos haja futuro...
Marcello Gomes da Silva
Londrina, 2013